O paradoxo do progresso
Vivemos um momento decisivo da história humana.
Enquanto o mundo discute metas de descarbonização e neutralidade climática, a realidade material da economia global continua ancorada em um modelo linear — extrair, produzir, consumir e descartar — responsável por mais de 70% das emissões globais de gases de efeito estufa, segundo a Fundação Ellen MacArthur.
Ou seja, mesmo que a humanidade substitua todos os veículos a combustão por elétricos e todas as usinas a carvão por energia solar, ainda não resolveremos o problema estrutural: a forma como usamos os recursos naturais.
A Economia Circular surge, portanto, não apenas como uma política ambiental, mas como uma estratégia de mitigação climática, capaz de atacar a raiz do problema — a lógica de desperdício energético embutida em cada produto que fabricamos e descartamos.
O elo energético entre materiais e emissões
Poucos percebem que matéria e energia são duas faces da mesma moeda climática.
Produzir um bem industrial significa, essencialmente, concentrar energia em forma sólida. Quando jogamos fora um produto, não descartamos apenas metal ou plástico — descartamos a energia que foi usada para extraí-lo, processá-lo e transportá-lo.
Por isso, a reciclagem é, de forma direta, uma política energética disfarçada de gestão de resíduos.
Cada quilo de material reaproveitado representa energia poupada e emissões evitadas.
Veja alguns exemplos concretos:
Alumínio: reciclar consome até 95% menos energia que produzir a partir da bauxita. Isso significa que, ao fundir sucata de alumínio em vez de minerar, refinar e eletrolisar o minério, evitamos cerca de 9 toneladas de CO₂ por tonelada produzida.
Cobre: a reciclagem reduz em 85% o consumo energético, preservando recursos naturais escassos e evitando a geração de rejeitos altamente impactantes.
Ferro e aço: a utilização de sucata metálica pode reduzir as emissões em até 70%, tornando a siderurgia circular uma das rotas mais eficazes para descarbonizar a indústria pesada.
Plásticos: embora mais complexos, os polímeros reciclados apresentam reduções de 50% a 80% no consumo energético, dependendo da resina e do processo.
Esses números mostram que a economia circular é uma usina invisível de energia limpa — uma que não depende do vento ou do sol, mas da inteligência com que reaproveitamos o que já temos.
A circularidade como infraestrutura climática
Durante décadas, o debate climático concentrou-se na energia: transição de fósseis para renováveis, eletrificação da frota, eficiência energética.
Tudo isso é necessário — mas não é suficiente.
Segundo estimativas do Circularity Gap Report 2024, apenas 7,2% da economia global é circular. Isso significa que mais de 90% dos materiais extraídos da Terra acabam descartados em menos de um ano — seja como lixo, seja como produto obsoleto.
Essa dinâmica cria um déficit de circularidade que amplia as emissões indiretas e pressiona ecossistemas naturais.
A solução passa por um novo tipo de infraestrutura: as cadeias de recirculação de materiais, compostas por redes de coleta, desmontagem, remanufatura e reciclagem avançada.
Cada uma dessas etapas tem impacto direto sobre o clima:
A recuperação de metais reduz emissões de escopo 3 em cadeias globais de eletrônicos, veículos e construção civil;
A remanufatura evita emissões ao estender a vida útil de produtos e componentes;
E a reintrodução de materiais reciclados substitui matérias-primas virgens de alto custo energético.
Em conjunto, essas ações representam a maior oportunidade de mitigação climática fora do setor energético.
A contabilidade invisível das emissões evitadas
O desafio atual não é apenas técnico — é contábil.
Os sistemas tradicionais de mensuração climática, baseados em emissões diretas, não capturam adequadamente os benefícios da circularidade.
Por exemplo: quando uma empresa deixa de extrair uma tonelada de minério porque reaproveitou o material reciclado, essa “emissão evitada” muitas vezes não aparece nos relatórios de carbono.
O mesmo ocorre em nível nacional — os inventários de emissões raramente incluem métricas de substituição de matéria-prima.
Isso cria um paradoxo: estamos reduzindo emissões, mas sem crédito por isso.
Incorporar a economia circular na contabilidade climática — como propõe o parágrafo 36 do Global Stocktake da ONU — é essencial para que governos e empresas tenham incentivos reais para investir em circularidade.
Trata-se de corrigir uma miopia estatística: reconhecer que reciclar é mitigar.
Economia circular é política de mitigação, adaptação e justiça
Além da mitigação, a economia circular também fortalece a resiliência climática e promove justiça socioeconômica.
Diferentemente das cadeias extrativas, centralizadas e intensivas em capital, as cadeias circulares são distribuídas, locais e intensivas em conhecimento.
Uma planta de reciclagem, uma cooperativa de triagem ou uma fábrica de remanufatura geram empregos verdes em escala regional, reduzem dependências externas e aumentam a autonomia industrial.
É uma forma de descarbonizar sem desindustrializar.
Na prática, isso significa que a circularidade pode ser a ponte entre o crescimento econômico e a estabilidade climática — um caminho de prosperidade que não se apoia na destruição, mas na regeneração.
Materiais críticos e segurança climática
Com a transição energética, a demanda por metais como cobre, níquel e lítio cresce exponencialmente.
A Agência Internacional de Energia estima que, até 2040, a produção global de cobre precisará dobrar para sustentar a expansão de painéis solares, turbinas e veículos elétricos.
Mas há um problema: não existe cobre suficiente no subsolo para atender a essa demanda sem impactos socioambientais severos.
A única solução realista é recuperar o cobre que já está em circulação — em cabos, motores, transformadores e equipamentos eletrônicos.
Essa é a essência da mineração urbana: transformar cidades e produtos em fontes secundárias de matéria-prima.
Além de reduzir emissões, ela fortalece a segurança de suprimento, evita conflitos geopolíticos e reduz a pressão sobre biomas sensíveis, como a Amazônia e o Cerrado.
Em outras palavras, a economia circular é também uma política de segurança climática e material.
O Brasil e a oportunidade da década
O Brasil tem uma posição única para liderar essa transição.
Além de abrigar a maior floresta tropical do planeta, o país possui uma base industrial diversificada, capacidade científica robusta e um enorme volume de resíduos urbanos e industriais que podem ser reinseridos no ciclo produtivo.
Setores como alumínio, papel, aço e eletrônicos já demonstram competitividade global em reciclagem.
O que falta é transformar essas práticas em estratégia nacional de mitigação climática — integrando economia circular às metas de emissões e aos instrumentos de política industrial.
A nova NDC brasileira reconhece esse potencial ao afirmar o compromisso de “promover a circularidade por meio do uso sustentável e eficiente dos recursos naturais ao longo das cadeias produtivas”.
Cabe agora transformar esse princípio em ações concretas, com métricas, incentivos e integração nas políticas climáticas e fiscais.
Circularidade como narrativa de futuro
O discurso climático global ainda tende a separar natureza e indústria, como se fossem forças opostas.
Mas a economia circular mostra que é possível alinhar competitividade, inovação e regeneração.
Cada material reaproveitado representa menos pressão sobre a biosfera e mais eficiência para a economia.
Cada produto projetado para durar mais é menos carbono no ar e mais valor retido nas cadeias produtivas.
Quando falamos de mitigação, não estamos falando apenas de tecnologias limpas, mas de inteligência material — a capacidade de fazer mais com menos, de criar riqueza sem esgotar a base que a sustenta.
A circularidade, portanto, não é um setor da economia:
é a lógica que deve reger toda a economia.
Do discurso à implementação
A COP30, sediada em Belém, traz uma oportunidade sem precedentes para consolidar esse paradigma.
É hora de transformar o conceito de circularidade em infraestrutura climática mensurável, integrando-a aos relatórios de emissões, aos mecanismos de crédito de carbono e às políticas industriais.
Isso significa:
Reconhecer emissões evitadas como parte legítima da mitigação;
Criar indicadores de circularidade setorial (energia, materiais, resíduos);
Estimular tecnologias de remanufatura e reciclagem avançada;
E integrar bioeconomia, mineração urbana e inovação tecnológica sob uma mesma estratégia nacional de descarbonização.
A equação é simples: menos extração, menos energia, menos carbono.
A economia circular é a tradução prática do conceito de sustentabilidade.
Ela não promete um futuro “menos pior”, mas um novo ciclo de prosperidade compatível com os limites planetários.
Enquanto o mundo busca novas fontes de energia, a circularidade nos ensina que a energia mais limpa é aquela que não precisa ser gasta. E que o material mais sustentável é aquele que já existe.
No combate às mudanças climáticas, a reciclagem, o reuso e a remanufatura não são coadjuvantes — são protagonistas. Reconhecer isso é dar um passo definitivo rumo a uma economia verdadeiramente regenerativa, capaz de garantir não apenas a sobrevivência do planeta, mas a continuidade digna da civilização que o habita.
Por Marcelo Souza
Especialista em Economia Circular e Mineração
Urbana
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